Entrevista com António Grosso sobre abusos na Igreja e JMJ

8 de Agosto, 2023

Falamos com António Grosso, dirigente do MAS, sindicalista bancário e co-fundador da associação Coração Silenciado, que apoia vítimas de abusos sexuais na Igreja Católica em Portugal.

António, foste uma das testemunhas ouvidas pela Comissão Independente que publicou, em fevereiro deste ano, um relatório sobre os abusos sexuais contra crianças e jovens na Igreja Católica portuguesa, que concluiu ter havido mais de 4800 casos. Desde então, verificaram-se alguns avanços?

AG: No seio da Igreja católica portuguesa, não encontro avanços nenhuns. No seio da sociedade portuguesa, sim. De facto, a comunicação social veio a dar considerável destaque ao tema; e muitos dos próprios fiéis, à saída das missas, logo que foi conhecida a reação dos bispos a esse relatório, vieram criticar os bispos. Na verdade, a postura da Igreja católica portuguesa foi muito negativa, indigna e depreciativa em relação ao trabalho e resultados apurados pela Comissão Independente. No intuito de continuar a encobrir, pretenderam reduzir o relatório a uma lista de padres acusados “sem provas”. Ora, eram mais de 500 páginas com mais de 500 provas testemunhais. Desprezaram estas e vieram até dizer que aquilo foram “casos ocorridos há mais de 50, 60 e 70 anos, quando nem sequer era crime público; eram meros atentados ao pudor, tratados com boas palavras” – disse o próprio Cardeal Patriarca de Lisboa, que também acrescentou “falar de indemnizações era insultuoso” para as vítimas. Acresce que os organizadores da JMJ nem uma linha sobre o assunto puseram no programa das jornadas. Mas devo dizer que o trabalho da Comissão Independente foi, sem dúvida, um grande avanço inicial, todavia muito travado.

Como vês a postura da Igreja e do Governo, particularmente no decorrer da JMJ, em relação a este problema?

AG: A postura da Igreja católica portuguesa foi vergonhosa, como já disse, e a do Governo não lhe fica atrás. Este Estado que se diz “laico”, mas afinal tão devotado ao catolicismo e às isenções fiscais à Igreja, também assobiou para o lado. Não surgiu nenhuma iniciativa por parte dos ministérios que tutelam a justiça ou a educação ou a saúde, que manifestasse apoio às vítimas de abusos (sexuais e não só – houve igualmente muita violência física e psicológica dentro dos seminários e conventos, etc) e que concretizasse, sem medo dos bispos, alguma atitude que obrigasse a Igreja a avançar com indemnizações ou alguma proposta para por fim às prescrições de crimes sexuais. É que o trauma de uma menina violada não prescreve; o trauma de um menino abusado não prescreve. E a prescrição resulta num troféu entregue ao abusador, ao criminoso.

Durante a JMJ, houve vários sinais de protesto contra a falta de separação entre os interesses da Igreja e do Estado, não só devido à inação perante os abusos sexuais, mas também por causa dos elevados gastos públicos com o evento. Esta é uma crítica válida?

AG: Afinal, querer é poder, como se costuma dizer. E quando o Governo quer – por mais irónico que pareça – pode. Pode multiplicar o número de carreias nos transportes públicos. Pode ignorar a transparência e ultrapassar as regras dos concursos públicos, fazendo ajustes directos no interesse da Igreja e de outros; pode ignorar as leis laborais e obrigar trabalhadores a não gozar férias marcadas ou a serem deslocados ad hoc para fora da sua área de trabalho regular, como foi o caso dos bombeiros, dos polícias, dos médicos, dos trabalhadores dos transportes – desde logo sectores esses já de si muito pressionados nos seus horários e mal pagos. E pode arranjar todo o dinheiro que for preciso para fazer a vontade à Igreja, à ostentação, às mordomias, ao contrário da disposição sempre hostil relativamente às reivindicações dos trabalhadores e à melhoria das condições de vida, nomeadamente de salários e de habitação. Todavia, temos de saudar aqueles que apesar de toda a pressão à volta da JMJ, não se submeteram e lutaram pelos seus direitos – caso das greves de médicos e de enfermeiros.

Consideras que a JMJ veio dar mais visibilidade a todos estes problemas? O que fazer agora?

AG: A visibilidade não a teremos se não continuarmos crentes nas nossas próprias forças enquanto trabalhadores. A visibilidade que estes problemas tiveram, apenas devemos não esquecê-la e sempre que for preciso é lembrá-la, para que se perceba a incoerência das políticas governativas e se denunciem os desvios de dinheiro, regra geral a favor do capital, das isenções fiscais a quem não precisa delas; e de como sempre há milhões para uns e apenas tostões para outros.

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